15/09/2009

O nosso universalismo


Paul Valéry [1871-1945], em La Crise de l’Esprit, define o espírito europeu e o europeu nos seguintes termos: “É notável que o homem da Europa não seja definido pela raça, nem pela língua, nem pelos costumes, mas, sim, pelos desejos e pela amplitude da vontade…”. Onde vemos aparecer o espírito europeu vemos surgir o máximo de trabalho, ambição, modificação da natureza exterior, afirmara imediatamente antes Valéry. O espírito europeu é, aqui, apresentado pela maximização da ambição, por uma vontade de constantemente se ultrapassar a si mesmo, bem como o que o rodeia. Esta vontade, desejo e ambição, na sua expressão mais intensa, definem o homem da Europa. Mas, definirá também o homem português? Também vemos o homem português como dono de uma vontade e ambição constantes? Essa imagem está de acordo com o que sabemos que caracteriza o português? Parece-nos evidente que não é assim o homem português. Este caracteriza-se mais pela falta de ambição do que pela ambição; a vontade que existe nele é a de ficar quieto, sossegado no seu canto, de forma a que ninguém o incomode (a que ninguém o chateie, diria). Portanto, essa fotografia do homem europeu não foi feita a pensar no português. Este não cabe na fotografia. Curiosamente, se pensássemos nos portugueses do século XV e XVI, não diríamos o mesmo. Só que na fotografia actual, o português tem de deixar vazio o seu lugar.
Esta caracterização do homem europeu que Valéry nos dá é para juntar aos argumentos que nos colocam fora da Europa. A nossa vocação africana e brasileira não é o nosso destino: é o único lugar que nos convém, que está de acordo com a nossa preguiça e ociosidade.
Também Kant acentua o espírito de iniciativa do homem europeu, bem como o seu espírito inventivo nos domínios das ciências e das artes e que se consubstanciaria num acentuado progresso civilizacional. Tudo isto sem prejuízo de Kant denunciar a exploração dos outros povos de outros continentes levada a cabo pelos Europeus. Kant regista a injustiça das relações dos Europeus para com os povos da América e das Índias Orientais: oprimiam os nativos, instigavam estes povos a lançarem-se em guerra uns contra os outros, provocando assim todos os males que afligem o ser humano; os seus entrepostos comerciais eram sede de escravidão deliberada e violenta, servindo o propósito de recrutar nessas paragens gente para as frotas de guerra e para as guerras na Europa. Tudo isto, denuncia ainda Kant, levado a cabo por potências que pregavam os seus propósitos religiosos. Ora, nesta fotografia mais abrangente parece que, infelizmente, já cabemos. O português revê-se melhor no europeu de Kant. Quando dizíamos que o português era um cidadão do mundo queríamos dizer com isso, que a sua alma abrangia todos os vícios de que era capaz o ser humano; o seu propagado universalismo significava que reflectia, na totalidade, os aspectos negativos da condição humana. O seu universalismo demonstrava que o lusitano, ao longo da sua centenária história, foi captando o género humano também na sua universalidade: na sua esperteza, no chicote e nas doenças venéreas. Como sempre, nunca ficamos bem na fotografia.

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